O tempo suspenso na imagem fotográfica: entre o retrato e sua narrativa
Uma fotografia emoldurada em
uma parede estreita da casa. Entre duas portas. Estreita, mas central. A parede
vista por todos aqueles que visitam a residência. Na composição, o casal de
moradores do espaço: José Camargo Filho e Benedita Alves Camargo. Esse espaço
narra o tempo de uma existência na região, a constituição de uma família e a sensação
de superação.
Moradores no Jardim Paulista
desde 1957, a parede no qual o retrato é exposto, diz em partes sobre a história
dos retratados. A alvenaria é do final dos anos de 1990. Até então o retrato
decorava a cabeceira da cama do casal na antiga construção em madeira.
Trata-se de uma fotopintura
emoldurada, encomendada por Vera Lúcia, uma das filhas do casal, ao falecido José Fotógrafo, antigo morador do bairro, e fotógrafo desde a década de
1960.
De acordo com o relato da
filha a fotografia seria um presente ao quinquagésimo aniversário de casamento,
ou seja, a imagem chegou alguns panos antes da reforma.
Está à entrada da casa, em
sua sala, às vistas de toda visita. Neste retrato o tempo foi suspenso. José Camargo (1928-2009), já falecido, decora a parede da sala em outras fotografias. Nesta, o casal
permanece jovem, tal qual o período em que a imagem original fora registrada. Celebra-se o tempo, não com a velhice, mas sim, com a
juventude eternizada. A juventude ausente do álbum de família. Em todo o acervo
fotográfico há apenas uma única fotografia do casal juntos. E foi
essa fotografia que a filha se apropriou para a montagem da composição.
Camargo Filho e Benedita Alves Camargo em passeio ao
Cinema na Av. Paraná em Londrina (PR)
Fonte: Acervo André Camargo Lopes
A imagem em questão, é uma
fotografia registrada no início dos anos de 1960, um pequeno pedaço de papel
fotográfico fosco de corte irregular de mediadas de aproximadamente 8,5 cm X
11,4 cm. Há ausência de anotações assim como em outras fotografias
preservadas na caixa de recordações do casal, em seu verso não apresentava nenhum escrito que desse pistas do lugar, período e intenção.
O que se tem é um jovem casal
em um passeio noturno. A pose nada mais é que resultado de uma abordagem
rápida, uma lembrança de algo significativo. Um momento juntos.
Uma vida
juntos.
Ao pensar a temporalidade presente na imagem fotográfica, Susan Sontag (2004,
p. 122), a define como um fragmento, apenas um resquício de um referente
existente em um tempo e um espaço registrado na ação fotográfica. Esta
definição retira da fotografia enquanto materialidade visual todo o seu peso de
elemento verídico, e transfere sua carga moral e emocional ao uso que se faz da
imagem. Afinal a fotografia por mais próxima que esteja de seu referente, é uma
imagem. E na condição de imagem, muda de acordo com o contexto em que é vista
logo o seu significado último, move-se em seus usos.
Tal definição se conforma
com as reflexões metodológicas de Mauad (1996) e Loizos (2002) ao afirmarem que
os textos visuais (dentre estes a fotografia) são resultados de um jogo de
expressão e conteúdo que envolve três componentes básicos a serem considerados
na análise destes documentos: o autor, a
imagem e o leitor. É o condicionante cultural que envolve estes três
elementos que deve ser questionado e tomado para a compreensão do documento.
Dentro desta perspectivas de usos e valores culturais, assim, também são as palavras, que tal qual a fotografia se inscrevem no tempo, nascem e morrem dentro das práticas sociais, têm seus contextos, seus agentes, seus espaços e são reativadas por questionamentos associativos. Ambas as linguagens referidas se completam como fontes em estudos histórico-culturais quando acionadas para a composição do mosaico que se forma a partir das muitas memórias que compõem em determinados espaços e os hábitos que se consolidaram nestes espaços em um determinado momento histórico.
Uma foto noturna
A fotografia que serve de
matriz para a montagem da composição da fotopintura, traz uma informação
implícita sobre hábitos noturnos de londrinenses (não que isso seja específico
de Londrina) ao longo do período de sua produção: o footing. É uma composição noturna, e a partir das narrativas que envolveram a fotografia ( Vera Lúcia e Benedita Alves Camargo), na Avenida Paraná,
área central da cidade. Rua comercial e com o badalado Cine Ouro Verde.
O flash
da câmera faz com que se veja muito pouco do que ocorre ao fundo da composição,
apenas um grupo de pessoas que caminham em direção contrária. Toda a cena está
em movimento, percebe-se as pessoas em deslocamento, como se o tempo presente
de suas ações continuasse a correr, não sendo igual ao tempo dos que posam para
a lente. A fotografia vista assim, pode também ser lida através do casal que se
colocam eternamente em frente à lente fotográfica.
Por esta abordagem, a imagem
fotográfica em seus elementos compositivos não nos diz mais nada além do que se
vê. Entretanto, a ação, o passeio noturno expõe contradições do espaço social,
da cidade socialmente “higienizada”. O footing do
casal, insere-os em um momento de dupla ruptura da fronteira social. Um casal inter-racial
de moradores do Jardim Paulista, às margens da Rodovia Melo Peixoto,
transitando em um espaço de gozo da vida burguesa.
Acervo: André Camargo Lopes / Clube da Fotografia.
Londrina (PR), 1958.
Ir ao cinema, reforçar os como casal, presente nas narrativas e imagem, um momento de lazer da vida árdua do trabalho, do descaso do poder público, uma ruptura com a rotina. A atestação da legitimação do
indivíduo envolto pelo trabalho. Não importa se uma vez por mês, ou aos
domingos ou até mesmo esporadicamente. A presença, o evento, está registrado. Em
trajes finos, não os de trabalho. Estão inseridos, ao espaço.
Visto desta forma, podemos afirmar que a pose, seguramente, não é inocente, é integradora, afirmando-se como parte desta cidade que margeiam. O retratar-se, frequentar o cinema, refletem uma capacidade de poder usufruir determinados elementos de valor simbólico deste espaço (roupa, lazer, trabalho, etc.).
Visto desta forma, podemos afirmar que a pose, seguramente, não é inocente, é integradora, afirmando-se como parte desta cidade que margeiam. O retratar-se, frequentar o cinema, refletem uma capacidade de poder usufruir determinados elementos de valor simbólico deste espaço (roupa, lazer, trabalho, etc.).
Proprietário: Benedita Alves Camargo.
Acervo: André Camargo Lopes / Clube da Fotografia.
FOTO ESTRELA - 1956.
Entretanto o silêncio da
imagem gera questionamentos que por si só essa não é capaz de responder: Quando
esta imagem foi realizada? Quem retratou este casal? Qual o valor econômico de
uma pose? Porque a fotografia na rua e não no estúdio? São muitas as perguntas
que uma imagem suscita, muitas vezes sem respostas. As informações continuam
incompletas.
como foi parar na parede: entre
apropriações e reproduções
Como visto, a fotopintura era um presente. A escolha das imagens matrizes, um desafio, visto o segredo. Eis que a escolhida é a do casal. Não uma 3x4 para documentos. Mas sim, o casal solto, a passear.
A composição da fotopintura é uma apropriação de alguns elementos da imagem original.
A composição da fotopintura é uma apropriação de alguns elementos da imagem original.
O que se pretende em uma imagem revisitada? Editada?
Que memória construímos a
partir disso?
A fotopintura é uma forma de apropriação e
reprodução de imagem, exposta nas paredes em porta-retratos em muitas residências, preserva, lembra e reconstrói
histórias. Os retratos pintados, geralmente de busto, frontalizados, em pares
ou individuais, registram faces coloridas, extraídas de imagens de documentos.
São retratos corrigidos, reparados em traços. Vestidos, ternos, joias e outros
acessórios são incorporados a retratos que horas remetem apenas a identificação
do retratado. É um ver-se preso a entrada de casa. Com fundos azuis e verdes,
destacando os personagens, em uma narrativa pessoal.
Nesta composição, restou da
imagem original apenas os rostos. Nela, manteve-se os brincos. Não acrescentou-se
mais nada como adereço. O terno branco e a camisa aberta foram substituídos por
um terno cinza e gravata. O vestido dela, agora azul com brilhoso, sugerindo
cetim, substitui a blusinha de algodoa e o tecido claro da fotografia original.
Seus rostos ganharam coloração, não mais escala
de cinza, e sim cores vibrantes, contrastantes ao fundo esmeralda. Quanto à
composição, tornaram-se bustos, pareados. Ela um pouco mais a frente encobrindo
o ombro do companheiro. Ao apropriar-se da imagem, o fotopintor redireciona o
sentido narrativo da imagem. Há uma pose efetiva. O casal, está posto diante do
observador, parado a fita-lo.
Narrar-lembrar
As informações incompletas deixadas
pela fotografia em questão, começam a ser montadas, quando somamos a esta, as
razões pelas quais o casal fotografado encontrava-se naquele espaço, fato
possível graças ao trabalho de coleta de informações orais, a partir de
entrevistas com os proprietários das imagens. No caso desta imagem, as
informações foram coletadas junto a filha do casal, Vera Lúcia Alves Camargo, e a própria Benedita Alves Camargo, em 2016.
Ao construir a narrativa
sobre a fotopintura, Vera Lúcia retomou, com a foto em mãos a história da imagem original, encontrando no olhar da mãe a confirmação de suas palavras.
Reforça em suas palavras que se tratava de um footing noturno na Avenida Paraná
no centro de Londrina. O ano é indefinido, assim como a palavra que explica a
ação, pois a interlocutora da fotografia tem informações limitadas sobre o
evento, e as definições sobre o que vem a ser tal expressão tão distantes de seu
cotidiano cultural.
Benedita, mais reservada, limitou-se em afirmar que eram passeios na Avenida Paraná,
em que os casais contemplavam as vitrines das lojas. Os fragmentos de suas
lembranças somados as recordações indiretas do fato que gerou a imagem, narradas por Vera Lúcia, remetem ao que afirma Sontag
(2004) sobre a memória afetiva manifestada em coleções fotográficas, diz a
autora, que por mais precisa que seja é sempre uma sinopse surrealista do fato,
algo idealizado e distante.
Quando tomamos as
fotografias como memória afetiva e expressões de época, e a partir delas construímos narrativas, colocamo-as como
vestígios de uma ação e de um tempo distante, muitas vezes vividos
indiretamente, por aquele que rememoram. Tal definição as coloca como memórias
pontuais de um indivíduo, ou de um grupo social. Por serem pontuais, são
capazes de acionar, estimular, uma reorganização do evento vivido. Estes
elementos são entendidos como marcos simbólicos (BOSI, 2004), capazes de
movimentar a memória dos envolvidos, criando pontos indicativos elos entre o
tempo vivido e o tempo presente, nos quais, o indivíduo ou a coletividade do
grupo social se concentram. Formam-se então, diversos pontos de vistas sobre
uma memória que é coletivamente compartilhada. Os deslocamentos dos indivíduos
promovem alterações sobre estes pontos de vista acerca do referencial coletivo,
transformando-a em um conjunto de percepções e representações heterogêneas
acerca de um mesmo referencial.
A partir desta colocação
sobre o trânsito da memória entre o individual e o coletivo, a fotografia como
documento de estudo histórico, permite o cruzamento de seus dados a outros
textos, possibilitando a composição de uma imagem mais complexa e mais viva do
evento em seu período de produção, tendo em vista que a condição indiciária da
imagem fotográfica por si só não a coloca em uma ação dinâmica em relação ao
passado (DUBOIS, 2009).
Neste aspecto a Literatura regional
(principalmente o gênero literário da crônica) se apresenta como uma riquíssima
fonte de dinamização na construção das representações que remontam ao tema de
pesquisa. Sua linguagem rica em figuras que se entrelaçam entre o ficcional e o
histórico complementam em vivacidade a eterna condição estática do retrato
fotográfico, problematizando situações, abrindo debates para outros temas que
envolvem a imagem em sua época de produção, tal qual a que se apresenta neste
fragmento da crônica “O dia que a Avenida parou” de Mauricio Arruda Mendonça
(2009):
FOOTING
O domingo londrinense amanheceu ensolarado
com um céu azul-turquesa. Após a missa na Matriz do Sagrado Coração de Jesus,
toda a cidade circulava pela Avenida Paraná. Era o costume daqueles tempos. As
moças e os rapazes faziam o chamado footing, um passeio pela Praça das
Bandeiras, (atual Marechal Floriano) onde os jovens podiam se ver e as
paqueras, namoros e noivados aconteciam. Naquela manhã de Maio era possível ver
casais de namorados manifestando seu afeto com recato e respeito. Tudo corria
normalmente. Porém, sem que ninguém pudesse explicar, um casal diferente veio
vindo pela calçada a partir da esquina da Avenida Paraná com São Paulo. Houve
silêncio de susto. Eram nada mais nada menos do que Marilena e Josué, uma
branca e um negro, de mãos dadas. Vinham felizes e orgulhosos de seu amor.
Olhavam nos olhos de todos que os encaravam com assombrados, mas os
cumprimentavam com desembaraço e educação. E, à medida que caminhavam para a
esquina da Avenida Rio de Janeiro, já ninguém mais achava estranho. Muitos
faziam gestos de aprovação, alguns aplaudiam ao longe enquanto Marilena e Josué
seguiam pela Rua Maranhão em direção ao Cine Ouro Verde. (MENDONÇA, 2009, pp.
78-79).
A crônica de Mendonça,
dentro de seu universo literário revela em seu corpo um dos muitos aspectos da
natureza cultural do período. A palavra footing
que problematiza o raciocínio do texto, é uma expressão da língua inglesa que
indica a ação de caminhar a pé, se popularizou em algumas regiões do país como
uma forma de passeio para descontração. Por ser uma forma de passeio o footing ganhou notoriedade nas pequenas
cidades interioranas como uma forma de lazer praticado nas áreas próximas as
praças das igrejas centrais ou em ruas de grande movimento comercial (com
cinema, bares, sorveterias) que favoreciam o encontro de jovens e
consequentemente o flerte.
Nelson
Capucho (2004) em sua crônica sobre a Praça Marechal Floriano Peixoto em
Londrina, intitulada de “ Footing,
Relojão e cabine erótica”, afirma o espaço como um local de lazer, envolvido
por pessoas que deslocavam de seus bairros afim de verem e serem vistos no
espaço, um jogo no qual as moças que transitavam pelo espaço eram observadas a
distância ou de perto por seus pretendentes, uma fuga do cotidiano familiar e
do trabalho, um alento ao romance de casais dos mais diversos níveis sociais.
Assim
como Mendonça (2009), Capucho (2004) vislumbra um período áureo a esta prática
no município, assim como o seu espaço bem definido. A época são as décadas entre
aos anos de 1950 e 1970, o espaço a Avenida Paraná.
O casal Benedita Alves Camargo e José Camargo Filho, juntamente com a cunhada Edite (esquerda), sua filha Vera Lúcia (blusa vermelha) e o jovem sobrinho Alcir. Todos a porta de sua residência na rua Brigadeiro Franco, no Jardim Paulista, Londrina (PR), em 1983.
Fotógrafo: José Fotógrafo.
Acervo: André Camargo Lopes/Clube da Fotografia
Assim, quando cruzada a
imagem fotográfica à crônica de Mendonça, outros aspectos culturais se revelam
tornando inevitável o estabelecimento de comparações entre os elementos visuais
da imagem às narrativas orais e literárias. A fotografia data dos anos de 1960, foi realizada no mesmo espaço
social, no mesmo município, porém, o elemento que desponta como problematizante
e instigante na composição é justamente o aspecto social e cultural,
não o fotográfico, mas o étnico-racial.
Casais de negros, neste período, eram aceitáveis, havia certa
naturalização de sua presença no espaço, assim como de pardos com negros, o
estranho era entender como uma mulher branca se deu ao "desplante" de se deixar
levar por um negro (como afirma dona Benedita, a jovem esposa da imagem
fotográfica). Neste momento, Literatura e fotografia se complementam para
promover o estranhamento necessário para a construção de uma imagem cultural do
período exposto, desconstruindo a aparente harmonia nas representações
fotográficas e textuais, creditando ao passado a sua natureza conflituosa,
decorrente dos grupos humanos que dele participaram como construtores.
O silêncio da fotopintura pendurada na parede, se irrompe em uma ensurdecedora atestação de companheirismo, de matrimônio. Está lá, para todos verem. Um ao lado do outro. Um casal.
O silêncio da fotopintura pendurada na parede, se irrompe em uma ensurdecedora atestação de companheirismo, de matrimônio. Está lá, para todos verem. Um ao lado do outro. Um casal.
Referencial
bibliográfico
ADUM, Sonia Maria Sperandio Lopes. Imagens do
Progresso: Civilização e Barbárie em Londrina – 1930/1960. Dissertação. UNESP,
Assis, 1991.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico.
Campinas, Papirus Editora, 2009.
LOIZOS,
Peter. Vídeo, Filme e Fotografias como documentos de pesquisa. In: BAUER,
Martin e GASKELL, George. Pesquisa
qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, Rio de
Janeiro, Vozes, 2002.
MAUAD, Ana Maria. “Através da
Imagem: Fotografia e História – Interfaces”. In: Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 1, n° 2, 1996, p.73-98.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução:
Rubens Figueiredo. 5ª ed. São Paulo, Cia das Letras, 2004.